sexta-feira, 5 de novembro de 2010


Spanische Tänzerin
Wie in der Hand ein Schwefelzündholz, weiß,
eh es zur Flamme kommt, nach allen Seiten
zuckende Zungen streckt—: beginnt im Kreis
naher Beschauer hastig, hell und heiß
ihr runderTanz sich zuckend auszubreiten.
Und plötzlich ist er Flamme, ganz und gar.
Mit einem Blick entzündet sie ihr Haar
und dreht auf einmal mit gewagter Kunst
ihr ganzes Kleid in diese Feuerbrunst,
aus welcher sich, wie Schlangen die erschrecken,
die nackten Arme wach und klappernd strecken.
Und dann: als würde ihr das Feuer knapp,
nimmt sie es ganz zusamm und wirft es ab
sehr herrisch, mit hochmütiger Gebärde
und schaut: da liegt es rasend auf der Erde
und flammt noch immer und ergiebt sich nicht—.
Doch sieghaft, sicher und mit einem süßen
grüßenden Lächeln hebt sie ihr Gesicht
und stampft es aus mit kleinen festen Füßen.

Spanish Dancer
As a wooden match held in the hand, white,
on all its sides shoots flickering tongues
before it flashes into flame—: within the inner
circle of onlookers, hurried, hot, bright,
her dance in rounds begins to flicker and spread.
And suddenly, everything is completely fire.
One glance and she ignites her hair,
turning all at once with daring art
her entire dress into a passion of flame,
from which, like startled snakes,
the naked arms awake and reach out, clapping.
And then: as if the fire were growing scarce,
she takes it together and throws it off,
masterfully, with proud, imperious gestures,
and watches: it lies there raging on the ground,
still flaring up, refusing to give in—.
Till triumphantly, self-assured and with a sweet
welcoming smile, she raises her face,
then stamps it out with small, powerful feet.
Translation Cliff Crego

Dançarina Espanhola

Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

Tradução Augusto de Campos
Der Panther
Im Jardin des Plantes, Paris

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden,dass er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.


Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein grosser Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf -. Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille -
und hört im Herzen auf zu sein.
R. M. Rilke


A PANTERA

(No Jardin des Plantes, Paris)
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.


A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

(Trad. Augusto de Campos)



A PANTERA


(No Jardin des Plantes, Paris)

Varando a grade, a nada mais se agarra
o olhar tomado de um torpor profundo:
para ela é como se houvesse mil barras
e, atrás dessas mil barras, nenhum mundo.


Seu firme andar de passos gráceis, dentro
dum círculo talvez muito apertado,
é uma dança de força em cujo centro
ergue-se um grande anseio atordoado.


De raro em raro, só, o véu das pupilas
abre-se sem ruído — e deixa entrar
a imagem, que sobe, pelas tranqüilas
patas, ao coração, para aí ficar.

(Trad. Geir Campos)

A PANTERA

(No Jardin des Plantes, Paris)

Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
É como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.


O seu passo elástico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.


Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. – Uma imagem então
penetra, a calma dos membros tensos trilha –
e se apaga quando chega ao coração.

(Trad. José Paulo Paes)

retirado de

http://www.org2.com.br/rilke-pantera.htm


-:-
AS ELEGIAS DE DUÍNO
"PRIMEIRA CARTA"
"As Elegias de Duíno, de Rilke, constituem não só uma das mais importantes obras da literatura alemã da primeira metade do século XX, como também uma das poéticas mais significativas do nosso tempo.
Iniciadas em 1912, no castelo de Duíno, perto de Trieste, Rilke só as terminou dez anos depois, em Fevereiro de 1922, na Suíça, quase simultaneamente com a criação de uma outra obra, "Os Sonetos a Orfeu". Em Duíno, o poeta escrevera a I , a II, parte da III e os primeiros versos da X elegia. Nos longos anos que se seguiram ao primeiro impulso criador, ele conseguiu apenas concluir a III (Paris, 1912), escrever a IV (Munique, 1915) e partes da VI e IX, estas últimas por ocasião de sua viagem à Espanha, entre 1912 e 1913. E em fevereiro de 1922, no castelo de Muzot, posto a sua disposição por um amigo - Walter Reinhart - Rilke terminou então as Elegias, escrevendo os poemas que ainda faltavam, isto é, parte da VI, a VII, a VIII, parte da IX, grande parte da X, e mais uma, a última, que viria a ser a V.
Ainda que várias circunstâncias tivessem concorrido para retardar a conclusão desse longo poema, onde se encontra visão poética e trágica de um mundo que desaparece, essa demora foi em grande parte motivada - segundo testemunho de Maurice Betz - pela preocupação do poeta em lhe dar a necessária unidade. Oculta para quem a procure numa continuação por assim dizer linear, de um poema a outro, ela se revela entretanto pelo sentido comum que os poemas possuem. "A unidade é poética, não filosófica" disse Bowra.(...).
Embora se possa dizer que as dificuldades da linguagem poética de Rilke sejam devidas à circunstância de ser ele o poeta de um tempo que não sabe pensar poeticamente, como disse Butler, não é menos certo que a dificuldade principal decorre de fatores inerentes à própria obra, entre os quais uma certa ambigüidade voluntária e mesmo procurada. Tudo isso concorre para que as elegias se coloquem, como já salientou Romano Guardini, entre os textos mais difíceis da literatura alemã.
As Elegias de Duíno, condensam por assim dizer uma riquíssima experiência poética e existencial, e estão de tal modo ligadas a episódios e experiências da própria vida do poeta que, por vezes, só o conhecimento desses fatos pode lançar luz sobre certas obscuridades.
As igrejas que Rilke visitou em Roma e em Nápoles, a sua longa experiência de Paris, aqueles amantes que ele encontrou, absortos em seu amor, no cais do Sena, os saltimbancos que ele viu no Luxemburgo, o cordoeiro que ele conheceu em Roma, e cujo trabalho lhe pareceu a repetição de um dos "gestos mais antigos da humanidade", o oleiro à beira do Nilo, reminiscências de sua viagem à Espanha, tudo isso se acha contido, embora às vezes transfigurado pelo ato poético, nas Elegias de Duíno.
Escritas, como foram, sob a pressão de uma força que ao poeta pareceu de origem sobrenatural, como ele mesmo relatou em carta a Marie von Thurn und Taxis e Lou Andreas Salomé, as elegias mostram, em inúmeros trechos, a preocupação absorvente e exclusiva de Rilke em transmitir a sua mensagem, o seu descobrimento, embora para isso tivesse de forçar, como forçou por vezes na V elegia, a lógica da linguagem e, em certos versos, a própria estrutura da língua alemã. A dificuldade lingüística das Elegia de Duíno reside muitas vezes, porém, no fato de que a mensagem traduzida por elas atinge, não raramente, os limites do dizível poético na forma espantosamente direta em que está vazada.
O tema central das Elegias é o mistério do homem e de seu destino num mundo que desaparece. Ao redor, porém, desse tema central alguns temas secundários formam a estrutura do poema. E o primeiro objetivo de uma interpretação deve consistir na revelação desses temas secundários, na manifestação do que eles encobrem e pressupõem. Entre estes o tema do anjo é o que aparece em primeiro lugar. Encontramo-lo já no primeiro verso da I, e ele volta a aparecer nas II, IV, V, VII, e X elegias. O anjo é aquele que, como notou E. Schmuidt-Pauli, representa nas elegias uma realidade espiritual superior.(...)
Aos problemas que nos foram revelados através dos temas precedentes (o anjo, os amantes, a boneca, os saltimbancos, o herói e o animal), Rilke opõe afinal o tema da metamorfose. Através dela o poeta encontrou para si o caminho que Malte buscara inutilmente: o da confirmação de que a vida é enfim possível. Preso ao cotidiano, e mais inseguro do que o animal (I e VIII); incapaz de se realizar no amor que , todavia, num momento lhe parecera oferecer quase a eternidade, e condenado ao perecimento incessante de seu próprio ser, como um cheiro que se exala e se perde; nem anjo nem Boneca, nem real nem ator, com a sua máscara cheia (IV); e ainda como os Saltimbancos da V elegia, que nos dão uma ilusão de realidade, mas não a realidade mesma, o poeta, que como aquele Malte Laurids Brigge ficara na "superfície da vida", descobre na metamorfose, através da qual o heróis já se realizara, o segredo do seu destino. "Amada, em parte alguma o mundo existirá senão em nós" Com razão disse Schmidt-Pauli que neste verso está a chave das Elegias. Só interiormente, o mundo das coisas efêmeras e perecíveis, que é o nosso mundo, continuará a existir. O que "cai e desaparece" aos nossos olhos continua a existir no coração do poeta."Nós somos as abelhas do invisível". Nous butinons éperdument le miel du visible pour l'accumuler dans la grande rûche d'or de l'invisible, disse Rilke na sua famosa carta a Hulewicz. Nessa transformação do visível, que é o mundo dos olhos, no invisível que se acumula, transfigurado e salvo, em nosso coração, está a essência da metamorfose.
E nisso está o orfismo rilkeano: a poesia como instrumento para outro fim que não o puramente estético. A partir de 1910, a poesia de Rilke inicia aquilo que o poeta chamou "a obra do coração". Para trás, Rilke deixava, ultrapassada e superada, a "obra do olhar", sobre cuja formação o escultor Rodin sobretudo exercera uma influência tão grande. Desse período são as "Ding-Gedicht"; a esse período ainda pertence o "Malte Laurids Brigge", onde já se pressentem todavia sinais de uma novo rumo. Superada, porém, a fase precedente, que parece corresponder a uma etapa necessária em toda evolução poética, Rilke inicia, celebrando com um poema intitulado "Wendung", a obra do coração".
As Elegias representam a obra culminante realizada pelo poeta nessa segunda fase da sua evolução. Nela está condensada toda a sua experiência artística e humana, os dramas de sua vida, o problema do amor e a concepção da vida e da morte como um todo inseparável no tempo, dentro do qual existimos ou deixamos de existir.
Nas elegias, a forma adotada pelo poeta difere sensivelmente daquela em que foram escritas as suas obras anteriores. Sem rima e sem métrica, em verso livre (com exceção da quarta e da oitava que estão escritas no equivalente alemão do "blank verse" inglês, como observou C.M. Bowra, no seu estudo sobre tradição simbolista) as Elegias antecipam, por assim dizer, a seqüência psicológica que T. S. Eliot usou em "Waste Land".
Poeta fundamental, Rilke é a voz de uma época em transição. Talvez seja a última voz do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos modernos", como quer Romano Guardini, e ao mesmo tempo a primeira voz e o primeiro poeta dessa nova era que estamos começando a viver.
*
PRIMEIRA ELEGIA
Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens Dos anjos?
E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo
De obscuro soluço. Ah! A quem podemos
Recorrer então? Nem aos anjos nem aos homens,
E os animais sagazes logo percebem
Que não estamos muito seguros
No mundo interpretado. Resta-nos talvez
Alguma árvore na encosta que diariamente
Possamos rever. Resta-nos a rua de ontem
E a mimada fidelidade de um hábito,
Que se compraz conosco e assim fica e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite, quando o vento cheio dos espaços
Do mundo desgasta-nos o rosto -, para quem ela não é /sempre a desejada,
Levemente decepcionante, que para o solitário coração
Se impõe penosamente. Ela é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio
Para os espaços que respiramos; talvez que os pássaros
Sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.
Sim, as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
Esperavam que tu as percebesses. Do passado
Erguia-se uma vaga aproximando-se, ou
Ao passares sob uma janela aberta,
Um violino se entregava. Tudo isso era missão.
Mas a levaste ao fim? Não estavas sempre
Distraído pela espera, como se tudo te ansiasse
A bem amada? (onde queres abrigá-la
Então, se os grandes e estranhos pensamentos entram
E saem em ti e muitas vezes ficam pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito
Ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu
Achaste muito mais amorosas que as apaziguadas. Começa
Sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi
Apenas um pretexto para ser : o seu derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma
Novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.
Já pensaste pois em Gaspara Stampa
O bastante para que alguma jovem,
A quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo
Dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar
Mais fecundas para nós? Não é tempo de nos libertarmos,
Amando, do objeto amado e a ele tremendo resistirmos Como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
Pois parada não há em /parte alguma.
Vozes, vozes.Escuta, coração como outrora somente
os santos escutavam: até que o gigantesco apelo
levantava-os do chão; mas eles continuavam ajoelhados,
inabaláveis, sem desviarem a atenção:
eles assim escutavam. Não que tu pudesses suportar
a voz de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,
a incessante mensagem que nasce do silêncio.
Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas
De Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, /tranqüilamente?
Ou uma augusta inscrição não se impôs a ti
Como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
Que eles querem de mim? Lentamente devo dissipar
A aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco
O puro movimento de seus espíritos.
Certo, é estranho não habitar mais terra,
Não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos,
Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas
Não dar sentido do futuro humano;
O que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo
Não ser mais, e até o próprio nome
Deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos. Estranho,
Ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto
No espaço. E estar morto é penoso
E cheio de recuperações, até que lentamente se divise
Um pouco da eternidade. - Mas os vivos
Cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes
Se caminham entre vivos ou mortos. A correnteza eterna
Arrebata através de ambos os reinos todas as idades
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.
Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo,
Perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno
suavemente se deixa, ao crescer.Mas nós que de tão grandes
mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes
o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar /sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos,
A primeira música ousando atravessou o árido letargo,
Que então no sobressaltado espaço, do qual um quase /divino adolescente
escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou
naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?

Traduções do poeta paraense Paulo Plínio Abreu publicadas no jornal "Folha do Norte" entre os anos de 1946 e 1948, realizadas em parceria com o antropólogo alemão Peter Paul Hilbert
.

in http://www.culturapara.art.br/opoema/rainermariarilke/elegiaduino.htm
RILKE, ORFEU E A IMAGEM DA INTERIORIZAÇÃO DO HUMANO
Nascido em Praga, em 1875, Rainer Maria Rilke é checo de nascimento, austríaco por vocação, mas sem Pátria territorialmente determinada, sem Nação que seja realmente a sua. É o viandante, como o Zaratustra de Nietzsche.
Percorre as múltiplas partes do mundo, desde a Europa até ao Norte de África, sempre acompanhado pelo espírito errante de quem não tem mais domicílio determinado ou permanente. Sempre atento a todos os pormenores que a sua longa vista alcança e que o seu aguçado ouvido consegue descortinar.
Adopta como Pátria a Poesia, esse vasto universo sem fronteiras materiais, extravasador do tempo e do espaço, apenas limitados pelo Espírito invariavelmente perseguido pela “grande solidão”, a única postura a que obedece, onde quer que se tenha situado temporariamente. Está sempre acompanhado pela Natureza, a grande mestra que tudo pode ensinar. Morreria se não lhe fosse mais permitido escrever sobre ela.
A escrita, sempre a escrita. Essa necessidade intrínseca à sua alma, infinitamente só, que tudo faz jorrar, de uma profunda interioridade, como uma fonte “na hora mais silenciosa da noite”.Rilke escreve sobre as suas tristezas e os seus desejos. Escreve sobre os múltiplos e diversificados pensamentos que lhe afloram, sejam eles de vida ou de morte, de alegria ou do mais drástico e atroz sofrimento.
Escreve conduzido pela convicção de que é preciso “viver tudo”, e assim amar as dúvidas e as interrogações, apesar do indizível, do inexprimível e do inexplicável acompanharem sempre o seu horizonte de pensamento, tão apegado aos maravilhosos e extraordinários silêncios da Natureza.
Sempre solitário, permanece o Poeta, para que os ruídos da voz humana não o impeçam de escutar a harmonia musical, a musicalidade inerente às coisas terrestres e celestes, ditas pelos homens, pelos Anjos, pelos Deuses. Entre estes, Orfeu é o representante supremo. Figura profética, vagueante entre os “dois reinos”. Tudo comove e petrifica.
Confere a eterna serenidade e harmonia a todos os entes com o som da sua divina e mágica lira, nele sempre ancorada como símbolo primeiro da metáfora da audição – que percorre obsessivamente Os Sonetos a Orfeu – do primogénito canto da Terra que, estando livre e sendo, em si mesma, uma dádiva, um dom, se dá aos “jogos felizes com as crianças”, sempre alegre como uma criança.
A Terra faz despoletar e florir todas as coisas, quando a eterna Primavera regressa. “A terra doa”, afirma Rilke, em Os Sonetos a Orfeu[1], mesmo apesar de esgotada e magoada, de manipulada pelo “Homem dominador” que a tudo lança as suas redes, as suas armadilhas, esse que não é mais fiel à Terra como as flores que “murcham arrependidas”. Orfeu é o ícone da autêntica escuta que há muito perdemos.
Ainda conserva a virgindade dessa escuta inicial que lhe permite ouvir “os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera (...)”[2]. Nada impede ao “deus audível” – que espanta, compreende, celebra e “canta dizível” – a escuta dos extraordinários silêncios da Terra, de cantar, com as mais belas melodias, as suas cores e as suas tonalidades mais diversificadas e características, eminentes nos negros arbustos, na folhagem envolta por um ”castanho futuro”, presentes ao longo de um “caminho poeirento”, onde o “verde desliza para o cinzento – / um cinza que, embora dominado, / contém em si tons de azul e prata”.
Um caminho que, numa outra dimensão, se mostra “sobre um pano de fundo negro e esverdeado”, onde, um pouco acima, encontramos “um salgueiro”, “ao vento / o escondido claro da sua folhagem” e ao “lado um verde abstracto, um verde pálido e visionário” que “embrulha de abandono / uma torre desagregada pelo tempo”.
A figura de Orfeu é, para Rilke, a inevitável encarnação daquele que é capaz de exaltar, de conduzir ao seu esplendor, o sentido dos sons que autenticamente escuta. Essa qualidade é exclusiva de Orfeu, do Poeta, que sendo “dos dois reinos”, sabe que o círculo do ser de cada ente se completa com a morte, que a si tudo chama, que concede a cada um o mais veraz conhecimento de si próprio: “Só a morte em silêncio conhece o que nós somos”. Nós, essa “raça de milénios”, “nós, mães e pais / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais”[3]. Ah! A morte, qual limiar absoluto do auto-conhecimento; qual estado supremo da vida interior; qual ponto único e irredutível que conduz o Poeta à via da sua interiorização plena.
Rilke, o solitário guerreiro do poema, amiúde acusado de ter cultivado, de si próprio, uma imagem mística, escreve, em 20 de Junho de 1914, um “estranho poema”, espontaneamente intitulado Wendung, representante, segundo o próprio poeta, do ponto de mudança da sua própria existencialidade, garantida sempre que pega na pena para voltar a escrever, para voltar, ainda, a viver outra vez.
Aqui, onde a escrita revela e des-vela a alma mortificada, anuncia-se a necessidade de uma viragem completa de uma personalidade tão marcada pela Guerra, esse estado de ser desviante da Humanidade que conduz indignamente as coisas ao seu próprio, mas inapropriado fim.
Urge, o poeta manifesta-o, uma viragem feita de fora para dentro, e, por isso, o que até ao limiar do derradeiro momento havia sido tarefa do olhar, passa a ser Herz-WerK, quer dizer, “obra do coração”: “Porque, olha, há limites para o ver, / e o mundo re-contemplado / quer dar frutos de amor. / A obra da vista está já feita, / fazei agora obra-de-coração / nas imagens dentro de ti, / presas dentro de ti”[4]. O ponto de viragem impõe-se, de facto, ao poeta.
E o caminho que da interioridade conduz à grandeza, passa pelo exterior, há quanto tempo já contemplado, intimamente frustrado e suplicante ao fundo do olhar, sempre envolto em contornos pouco nítidos, sob a aura de um coração sensível e de um corpo dolorosamente atormentado, que espera, no quarto da estalagem, um leito de suplício redentor[5].
Rilke passeara os olhos e o corpo doente pela exterioridade do mundo, ávido de impressões exógenas, buscadas em viagens pela Escandinávia, Itália, Espanha ou Egipto, embora receante de jamais poder fechar-se sobre a sua própria concha. Torna-se irremediavelmente voltado para fora.
Enlaçado por uma espécie de disposição a que chama “bem-estar”, o encontrar-se numa casta de neutralidade corporal significante do não-tomar-partido do corpo, ao mesmo tempo que uma força se sobreleva e toma conta do seu interior deixando, por alguns momentos, perder no coração geral, o próprio coração, em pleno espaço de combate que a Guerra naturalmente fazia perdurar e que não é mais preciso ver, ou até mesmo lembrar.
Tal como Orfeu, Rilke sente-se desejoso de realizar a grande obra de libertação das imagens da morte presas dentro de si mesmo. Expulsa, por isso, toda a imposição exterior para re-adquirir o ritmo pessoal, não obstante a tragédia envolvente dos que partiam e dos que ficavam, nessas terríveis e abomináveis batalhas mortíferas, atormentadoras da tranquila disposição da alma do poeta que, no entanto, encerra em si a certeza obscura e íntima de que, na terrível montanha «haverá uma força a mais, e o coração tornar-se-nos-á mais forte».
Só então poderá sentir, de novo, o que há de mais sagrado e de mais puro. «Tão grande e tão sem sentido, afirma Paulo Quintela, que o morrer tranquilo e natural, aquele resvalar, insensível ou doloroso, para a morte própria que lhe era tão querida, é portador de consolação inefável. É o que diz a 4 de Outubro ao Príncipe de Thurn e Taxis, na carta de pêsames pela morte da mãe: ‑ ‘Talvez seja uma espécie de consolação involuntária que, nestes dias da morte elevada ao monstruoso, o dolorosamente natural se cumpra como que com natureza mais suave –»[6].
É o sentir e a meditação sobre a enormidade da matança sem sentido que perturba o espírito de Rilke, apesar de tudo apegado aos homens, cuja palavra, porém, lhe inspira medo e desconfiança: «Tenho tal medo da palavra dos homens / Eles exprimem tudo com tanta clareza: / (...) E também me amedronta o seu sentido e o seu jogo / com o escárnio, / eles sabem tudo o que há-de ser e já foi;/(...) Hei-de advertir e opor-me: Ficai de largo! / Gosto tanto de ouvir cantar as coisas. / Mal lhes tocais ficam hirtas e mudas. / Matais-me todas as coisas.”[7].
Os sonhos do futuro não deixam de despoletar no poeta, apesar de todas as atrocidades existenciais e dos ventos que sopram em sentido contrário. Emerge, amiúde, a esperança de que uma palavra de compreensão e de humanidade toque os corações selvagens dos fazedores da Guerra, dos provocadores das mortes inocentes, até que a guerra, esgotada, rua sobre si mesma e, então, se abram novas portas para que o futuro possa começar de novo. Mas quando? Nesta época de indigência, de infortúnio, como poderemos esperar a redenção, a salvação?
Contrariamente a Orfeu, o nosso olhar deve ser expectante. Porém, nunca os nossos olhos, tal como os dele, se poderão voltar para trás. Ainda valerá a pena caminhar de cabeça erguida, de olhos voltados para o que está, para o que há-de vir, para o infinito? Talvez Rilke desejasse, como o “deus cantor”, descer ao reino dos mortos, morrer como os outros morreram, esses que não foram forçados a ver o horrendo e o monstruoso espectáculo que assomou o ínfimo espaço que ocupamos neste Universo, errante, que já não conseguimos mais habitar poeticamente.
É no seio desta atmosfera de mortandade geral e anónima, provocada pela Guerra, que se coloca a Rilke a problemática da morte, tão vincadamente presente em Os Sonetos de Orfeu. A morte, essa figura injusta do Destino de todos os nascentes que, dolorosamente, nos rouba os entes mais queridos.
Talvez seja mesmo este o sentido último que possamos extrair deste evento devastador e irremediavelmente presente em todas as vidas, sem excepção. Saber-se alguma coisa da própria Morte, «esse cozinheiro azulado / numa chávena sem pires / (...) essa comida cheia de obstáculos / (...) esse duro presente, / como uma dentadura postiça”[8]: Talvez esta aterradora experiência se desenrole perante observadores desprevenidos, se é que nos é possível imaginar a existência de olhos imperturbáveis, de olhos que apreendem e contemplam, tal como o geólogo, a rocha apenas na sua extrema dureza e apurem um outro grau ainda superior de dureza da vida, para além da morte, assim desenhada em tão grande efervescência.
Esta preocupação, esta reflexão constante sobre da morte, vai-se aprofundando, cada vez mais, no sensível espírito de Rilke para quem o sofrimento é, em si mesmo, uma forma de redenção, até se constituir como o ponto nevrálgico da sua concepção de mundo, personificada na figura de Orfeu. Orfeu. Sempre Orfeu, o semi-deus cujo canto o torna eternamente vivo para além do seu perecimento nas mãos das furiosas Ménades que, só em aparência, conseguiram calar o som encantatório da lira que lhe fora doada por Apolo, perpetuada pela canto misterioso do rouxinol.
Aqui toma forma e expressão plena a ideia da implantação da morte na vida. A aceitação da vida e da morte mostram ser uma só coisa. A Morte é apenas «o lado da vida que não está voltado para nós e que nós não iluminamos».Rilke mostra-nos, a cada momento, esta imperiosa necessidade de interiorização da morte, assim como da interiorização de Deus: a morte, que expulsámos de nós, e tornámos uma coisa absolutamente exterior, como se fosse algo que não nos dissesse directamente respeito, que não fizesse parte do curso natural da nossa própria vida.
Tornámo-la cada vez mais afastada de nós. Espia-nos algures no vazio para, de repente, sem aviso nem chamamento atempado, quiçá, por uma escolha malévola, assalta-nos imprevistamente. Assim aconteceu com Eurídice, a esposa amada por Orfeu, que, subitamente, na noite do dia do seu casamento, foi mordida por uma cobra venenosa.
Impiedosamente, chamou-a para reino dos mortos, conduziu-a ao Hades, condenou-a a permanecer aí, nesse local medonho, sem o seu amado, para todo o sempre, apenas em virtude de um olhar que não resistiu e se inclinou para o lado proibido: «Ela porém ia pela mão do Deus, / travado o passo das faixas de morta, / incerta, suave e sem impaciência. / Seguia ela em si como de esperanças / e sem pensar no homem que ia à frente / nem no caminho que subi à vida. / Estava em si. E o seu ter-morrido / enchia-a toda como uma prenhez. / Tal qual um fruto de doçura e treva, / estava cheia da sua grande morte, / que era tão nova que nada entendia»[9].A morte, jamais visionada pelos homens como o mais fiel adversário da vida, emerge como um “adversário invisível no ar”, qual «taça perigosa da nossa felicidade, da qual a cada momento podemos ser entornados».
É-nos, afinal, tão mais próxima do que qualquer outra coisa que nos rodeia quotidianamente. Mas, mesmo assim, não podemos apurar sequer a distância entre ela e o nosso “íntimo centro vital”.
Eurídice é exactamente o arquétipo perfeito dessa presença constante da morte na vida, da inseparabilidade radical destes opostos que, a limite, se completam no ser e no estar quotidiano do homem.
Á medida que as mortes individuais, aquelas que mais directamente são sentidas pelo poeta, se vão sobrepondo à dolorosa enormidade das mortes anónimas da massa incógnita de seres humanos reduzidos à mais vã poeira de si, vai-se definindo, com clareza, no seu iluminado espírito, uma nova missão: «Se, no meio da turvação e desconcerto geral do humano, vejo ainda perante mim uma tarefa, pura e independente, é unicamente esta: reforçar a intimidade com a Morte partindo das mais fundas alegrias e magnificências da Vida: tornar a Morte, que nunca foi uma estranha, de novo mais reconhecível e perceptível como confidente discreta de tudo o que é vivo»[10].
Tudo se elabora e se consolida, no inconstante espírito de Rilke, de um modo verdadeiramente vivo. Tal como Orfeu, sente a estrita necessidade do imbricamento dos “dois reinos”, cada vez mais inseparáveis no existir humano, mas, cada vez mais, também, determinados por uma aparente apatia, melancolia e secura do coração.
É “um estado de congelação interior” que torna esse músculo vital quase inacessível, agravado pela mais íntima necessidade de recolhimento e isolamento, dilaceradora do coração que sente.
Emerge o desassossego do mundo exterior, a insegurança de um espaço chamejante no qual já não se pode mais colocar um objecto, uma palavra, sem que, de imediato, despoletem sombras inquietas.
A única saída possível é o recolhimento, entendido como o meio de alcançar um lugar mais recôndito, onde ainda se possa encontrar alguma estabilidade. O Mundo já não é mais o lugar onde seja permitida uma plena auto-realização.
O Mundo tornou-se adverso, aureolado por uma esfera de inacessibilidade perante a qual só há um caminho possível: a solidão, o recolhimento interior, o isolamento, o fechamento de si.
É o que resta ao poeta modernista que, como ninguém, sentiu e vivenciou o estado de errância do humano, impotente perante a inquietude de um Mundo que nada perdoa, mas que exige e violenta mesmo o coração sem mácula, o coração que encontra na Natureza a única e grande companheira de todas as horas de enfado ou de tédio, de alegria ou de expressividade dos que amam profundamente as entranhas da Vida, de que da Morte nunca se separa.
As expressões de desânimo e, por vezes, mesmo de desespero e de revolta, tão características dos autores modernistas, repetem-se e acumulam-se na sensível alma do poeta, depositária dos segredos da Terra, onde, desolado, consegue encontrar alguma harmonia e tranquilidade: «Eu fui pré-mundo. / Foi a Terra que me confiou o segredo, como ela faz com o germe, / para o conservar intacto. Oh as noitinhas íntimas! ambas nós chovíamos / tranquilas e aprilinias, a Terra e eu, sobre o nosso seio. / Homem! ai, quem pode provar-te a harmonia fecunda / que nós sentíamos. O silêncio do Universo nunca te será / anunciado, nem como ele se fecha em volta de alguma coisa que cresce»[11].
É a subversão e o enterramento do individual, a obliteração das medidas e, sobretudo, do coração individual que já não é mais medida da Terra e do Céu, mas diariamente assaltado por “sucessos e empreitadas”, que chocam o Poeta. Não lhe pode escapar o lado sórdido da catástrofe.
Não são raras as invectivas a que assistimos contra a campanha de mentiras que assomam, a cada passo, neste mundo sem freio previsível. O mais terrível é a pobreza interior e a indizível miséria da própria vida. Já não há meios adequados que a permitam descrever.
As palavras tornam-se insuficientes face à grande lamentação, ao desespero do luto: «tudo o que agora houvesse ainda para dizer, teríamos de parti-lo cá dentro com um pedaço do coração –, fica para além do exagero, para além do máximo jamais possível em palavras, e o desmedido da lamentação que de nós quer irromper pressupõe em nós, para ficar ainda dentro da medida, um ânimo infinitamente ampliado que por sua vez não se poderia desenvolver em época tão confusa e enredada»[12].As palavras já não são capazes de dizer as coisas.
O mundo tornou-se monstruosamente indizível. A alma do Poeta é assombrada pelo desalento, pela revolta, pela destrutividade brutal da Guerra que, tal como a cobra que mordeu o pé da formosa Eurídice – na noite em que iria desfrutar, pelo amor, dos prazeres intermináveis da tão esperada união conjugal – conduz cada ser humano à indignidade da sua própria existência, pela absurdidade em que a envolve, extravasadora dos próprios domínios naturais da Vida.
Face a um Mundo assim configurado, e apesar do seu constante grito de alerta, o Poeta sente-se impotente. Para além do recolhimento, resta-lhe o silêncio, essa outra forma de dizer o indizível. Mas não se cansa de perguntar.
Tal como Orfeu, não desiste de transcender o mundo dos vivos para o mundo dos mortos e, pelo seu terno canto, recuperar uma vida dolorosamente perdida: «Não há então ninguém capaz de impedir e de ter isto? Porque é que não há um par, três, cinco, dez, que se juntem e gritem nas praças: Basta! e se deixem fuzilar e tenham dado pelo menos a vida por gritar: basta!, enquanto os outros lá fora morrem ainda só para que este horror continue, e continue, e se não veja o fim à destruição. Porque é que...» Sim: ‑ Porquê? ‑ Pobre Poeta?»[13]
Rilke, que traz a multidão dentro de si, impotente, desolado, recolhe-se novamente ao silêncio. Embora parta sempre das suas mais íntimas e mais centrais convicções, reconhece-se absolutamente incapaz de comunicar. Os seus impulsos mais fortes estão encerrados na sua mais tensa produção, esquivando-se a toda a censura do mundo.
“Cidadão da Europa intelectual”, como lhe chamou Paul Valéry, é uma da figuras mais puras e mais estremes da cultura europeia que, não obstante as vilanias do seu tempo, não deixa de transportar, através de céus e terras, os grandes e suculentos entusiasmos duma humanidade comum.
Guarda sempre em si uma palavra de esperança, conduzido pela ideia que move a obrigação da humanidade para um futuro comum, que culminará na união de milhões de homens em todas as terras e em todos os lugares. Nesse instante supremo será possível falar, de novo.
Quebrar o silêncio e, então, cada palavra, seja ela de amor ou de arte, encontrará um novo eco, um som inteiramente renovado, uma nova acústica, uma nova musicalidade e, até mesmo, uma atmosfera mais aberta e um espaço mais amplo que, trará ao poeta, o renovado e firme desejo de continuar a viver, em prol desta mesma esperança.
Aliás, «sem ela, tudo (...) ficaria pesado sobre nós como uma montanha»[14].O deus da lira, senhor do canto e da poesia, participa desta experiência preenchedora que é ouvir, escutar, e des-vela o “ante-cantar” como uno. Só o silêncio dos mortos pode ser seu par, porque a humanidade, afastada do circuito órfico, não tem o entendimento da circularidade, não canta mais o canto da Terra, sempre redondo.
Assim persegue Orfeu, ou se preferirmos, Rilke, em busca de uma espécie de “sossego musical” que faz voltar a si a Terra antiga, ainda em estado de silêncio: os ruídos “dispersos acalmam-se, ao abandonar o dia / e, em uníssono, recolhem à voz das águas”.
Orfeu e Rilke são, a um tempo, a “orelha da Terra” e a “Boca da fonte” que fala do “uno puro” e inesgotável. Da Terra sem ruídos, apenas estasiada perante a lira erguida que o louvor entoa. Da lira, que até os mortos faz erguer, sempre que tocada por esse mensageiro dos vivos, que transpõe o limiar dos mortos e que da morte faz vida.
A música e a morte são, em de Rilke, um dueto verdadeiramente inseparável. A música assalta o poeta com uma fúria rítmica, portadora de uma censura erguida contra o coração que, por vezes, não sente tal vaga e quase sempre se contenta com vibrações menores.
Não tem mais “fôlego para arrancar / tempestades de som” a “trombeta do anjo” pela qual se “inicia o juízo final”[15].A Música é esse “hálito das estátuas” ou, quiçá, o “silêncio das pinturas”, “a língua onde as línguas acabam”. É o “tempo posto aprumo sobre o sentido dos corações transitórios”.
É a transmutação dos sentimentos em paisagem audível, a eterna peregrina onde repousa o espaço dos corações de nós liberto. Também é o que nos transcende. Também é o mais íntimo de nós, quando esse íntimo nos envolve “como o mais exercitado dos longes”, como o outro lado do ar puro que a todo o momento nos refresca a alma e nos leva o espírito para as alturas, onde repousam os Anjos e os Deuses, de um modo absolutamente puro, gigantesco, mas já não habitável[16].
Nós, os humanos, não somos senão apenas boca. “Somos voz só da boca” que, de repente, solta um grito quando a música já não é mais música e se transforma num ruído insuportável, afastando-nos da musicalidade original e do harmonioso canto da pura lira do “deus cantor”.
Assim se torna inaudível aquela música que deixara estupefactos, outrora, aqueles ainda capazes da escuta primogénita; que tornava suas almas infinitamente abertas aos apelos do silêncio, mostrante da escuta autêntica e da fala primeira: «Se tudo ao menos uma vez se calasse. / Se o casual e o acidental / emudecesse, e o riso vizinho: / se o ruído, que os meus sentidos fazem, / me não estorvasse tanto na vigília –»[17].
Seguindo de perto a natureza tão peculiar de Orfeu, Rilke constata a existência de duas realidades sem conciliação possível: a Natureza e a Humanidade. Não experienciam exactamente a mesma unidade: Não seguem os seus caminhos monozigoticamente. São campos que se dão, amiúde, na sua mais drástica oposição e paradoxalidade.
O ser humano sofre ao afastar-se da dádiva da Natureza, fonte e reserva de todas as forças que, no entanto, vai esgotando, impiedosamente, pois já não tem mais consciência dos limites da sua dominação absurdamente incontrolada e incontrolável.
Na escala ontológica de gradação de todos os entes, bitolada pelo grau de proximidade de cada um para com a Natureza, o homem, que pouco tem guardado da sua humanidade, é inferior ao animal e à planta. Distanciou-se da sua vida total, tornando-se um ser de pobreza, tal como já havia sido enunciado por Sófocles, no segundo coro de Antígona, incomparável obra de arte trágica que, como nenhuma outra, dá conta das violentas barbaridades do humano perante a Natureza, indefesa, apenas desejante de preservar o seu equilíbrio e a sua estabilidade, em toda a sua dignidade e autenticidade.
As palavras de Sófocles são, neste ponto, perfeitamente ilustrativas da posição rilkeana. O tragediógrafo grego, ainda imbuído pela áurea significante do pensar originário, apercebe-se de que, o nosso vandalismo ecológico, não é senão mais do que uma consequência inevitável de uma inquietante estranheza inicial que, bem como o poder que ela engendra, precede o homem.
É sobre esta vida que roda sobre si mesma, mas que não habita mais dentro do seu próprio círculo, que o ser humano atira os seus laços e as suas redes, quais instrumentos destruidores da ordem natural da própria Natureza. A toda a ordem tenta impor os seus jogos, por vezes, irremediavelmente esmagadores. Devemos examinar, sempre na ausência da nossa miopia, o sentido que deve ser conferido à brilhante conquista feita pelo homem do Mar, da Terra e das espécies animais.
A travessia dos mares, a abertura da Terra, com a ajuda dos arados, põe em obra o movimento de violência que é central ao homem, o qual, continuamente errando, desenraíza, forma e disforma os limites da vida orgânica.
O grande grito de alerta, surgido no já referido coro de Antígona, encontramo-lo, vivamente resplandecente, na figura do homem imperialisticamente dominador de Os Sonetos a Orfeu, o mais inquietante e prodigioso entre todas as criaturas: «Homem dominador, desde que encarniçado / andas na caça, mas sei-te, mais que rede e armadilha», cujo «matar é uma forma do nosso luto errante»[18].
É um ente "extra-ordinário", enorme, que «co’o sopro invernoso do Noto, / passando entre as vagas / fundas como abismos, / o cinzento mar ultrapassou. E a terra / imortal, dos deuses a mais sublime, / trabalha-a sem fim, / volvendo o arado, ano após ano, / com a raça dos cavalos laborando. / E das aves as tribos descuidadas, / a raça da feras, / em côncavas redes / a fauna marinha, apanha-as e prende-as / o engenho do homem. / Dos animais do monte, que no mato / habitam, com arte se apodera; / domina o cavalo / de longas crinas, o jugo lhe põe, / vence o touro indomável das alturas. / A fala e o alado pensamento / as normas que regulam as cidades / sozinho aprendeu; / da geada do céu, da chuva inclemente / e sem refúgio, os dardos evita, / de tudo capaz. / Ao Hades somente / fugir não implora. / De doenças invencíveis os meios / de escapar já com outros meditou. / Da sua arte o engenho subtil / p’ra além do que se espera, ora o leva / ao bem, ora ao mal; / se da terra preza as leis e dos deuses / na justiça faz fé, grande é a cidade; / mas logo a perde / quem por audácia incorre no erro. / Longe do meu lar / o que assim for! (...)»[19]
Este é o modo próprio de ser dos humanos e da sua vida de habitantes na Terra. E Rilke, que frequentou intimamente os pintores de Worpswede, sente-se participante das mesmas intenções desses artistas que captam, tal como Sófocles, em tempo de infortúnio, a essencialidade dessa habitação humana na Terra, que também é pro-dução, poihsiz, no sentido da jusiz grega que, em si mesma, dá o ser da habitação, como o cultivar e o edificar, e não mais como o destruir, o manipular ou o aniquilar. Cultivar é vigiar o crescimento dos vivos.
O Habitar indica-nos o cuidado da morada dos mortais na Terra. Um cuidado que não é senão o modo do seu sustento, do qual a Terra é fonte originária.Worpswede é, para Rilke, o reduto onde a paisagem é admirada e respeitada em todo o seu esplendor. Pintores vieram de longe para viver nesse pedaço Natureza, para a admirar e sentir a sua força criadora. Partilhando de uma mesma emoção de vida. Pretendem que as suas obras revelem a adesão íntima ao estado de ser próprio da Natureza virgem, imaculada.
A Einfühlung, com as manifestações da Natureza, resulta de uma relação privilegiada: estes pintores instalam-se na Natureza para interpretar os seus sinais e os seus sons, para compreender, intimamente, a sua mensagem e não para a desventrar. Rilke refere particularmente o espírito de finura de Bökclin [20] em captar a pulsação da Natureza e de todos os seres que, real ou alegoricamente, a preenchem.
Quando na auréola de um bosque, Bökclin pinta um licorne selvagem, parece incarnar nele todo o mistério da floresta. E se o pintor faz poucos retratos é porque existem poucas pessoas que revelem, no olhar, o carácter da relação que os artistas têm com a Natureza. Por isso é que para Rilke, Bökclin, é um dos pintores que mais intensamente percebeu que a fronteira que separa a Humanidade e a Natureza é perfeitamente intransponível.
Os pintores de Worpswede, tal como o poeta, perseguem a essência da Natureza. Mas ela sempre lhes escapa. A Natureza gosta de se esconder. Tem as suas próprias leis internas, por vezes, inacessíveis à mais perspicaz forma em que a inteligência humana se apresenta, como bem observaram os pensadores renascentistas. A Natureza é indizível e até mesmo inexprimível, como o enigmático sorriso da Mona Lisa.
Esse sorriso de Anjo, pintado por Leonardo de Vinci, esse tipo ideal de retrato renascentista. Um ente perfeito e misterioso, sempre a olhar para nós. Encerra diversos valores simbólicos. Insinua, a cada instante. Surge uma interrogação intelectual que, ao parecer desvendar-se, quando se desvenda, se transfigura.
Com a transfiguração vem a certeza de que o sentido que parecia próximo está, outra vez, escondido, longe. Rilke reconhece que a Natureza tem segredos insondáveis para os humanos. É mais misteriosa do que os mortos. A sua origem é mais enigmática do que a Morte e a Vida. E, contudo, os humanos frequentam a Natureza como se fossem donos dela.
Com prepotência, servem-se dela e dos seus magníficos dons, explorando os seus recursos até ao esgotamento. Estranhos da Natureza, habituaram-se a contactar com ela superficialmente. São apenas as crianças que a reconhecem como reduto matricial, integrando-se nela, com a mesma facilidade com que fogem dos adultos e dos seus hábitos.
O conforto da infância com a Natureza permanece nos adultos, exclusivamente, como memória de experiências, outrora felizes. Quando procuram as raízes da infância, a Natureza aparece como imagem desse tempo plenamente redondo, primordial e infinitamente originário. Rilke manifesta, obsessivamente, uma ânsia de voltar à infância, de marcar um encontro com as origens, de ser novamente criança.
De ser como as crianças que brincam, lá fora, passando ao lado do grito verdadeiro: “Oh fosse eu, / um menino e pudesse voltar a sê-lo ainda”, exclama Rilke, nostalgicamente, na Sexta Elegia.É precisamente como adulto que o ser humano não vive o sentimento do todo da Natureza, não ouve o canto da Terra. Mas, «a música, sempre nova, vinda das pedras mais frementes, / constrói no espaço inútil a sua casa divina»[21].
O canto da Terra não deixa de manifestar-se ritmicamente. Na Primavera, a Terra está particularmente esfuziante, depois da invernosa reserva entorpecida em que interrompe a doação. «A primavera regressou. Em tudo / a terra é uma criança e aprendeu inteiras / tantas, tantas poesias... E, pelas canseiras, / recebe o prémio do seu longo estudo. (...) Terra que estás livre, dá-te a jogos felizes / agora co as crianças. Quem te apanha, / alegre terra. A mais alegre ganha.»[22]
Rilke exprime com as imagens da fonte, dos frutos, das flores, das árvores, das seivas, dos sucos, dos rumores e dos perfumes, a vitalidade real em que se move a Natureza, re-completando ininterruptamente o magnífico círculo do regresso e da despedida.
A fonte, uma boca prenhe de dádivas, fala-nos do uno puro e inesgotável. Dela brota a água sempre corrente que nos chega por uma “máscara de mármore”, a «água desbordada / pra outra água à espera lá no fundo, / silenciosa aguardando a que vem murmurando / em segredo, a mostrar-lhe na cova da mão / o céu, por trás de verde e escuridão, / como coisa escondida e cobiçada (...) / pela borda musgosa a cair mansa / pra o espelho do fim que lá de baixo, baixo, / faz a concha sorrir em trémula mudança”[23]. Embora fale aos vivos, somente ao morto é dado beber dessa água, “aqui por nós ouvida, / quando o deus lhe acena em silêncio, a chamá-lo».[24]
A fonte é origem. É abertura de onde irrompe a água mais pura e cristalina. É, o receptáculo de retorno. Dela se soltam falas, de uma inesgotabilidade divina. A água corrente é sonora e primordial, como o fogo, o ar e a terra. Vem de longe, transportando as falas. Porém, “para si somente / ela fala”. Sem interlocutores, a Natureza, numa tranquilidade insuspeitada, comunica o fio de harmonia captável pelos sons mais subtis: “Maçã cheia, pêra e banana, a dita / uva-espim... Tudo isto fala”.
A chama, ao variar a sua forma com toda a fantasia, é um elemento de transubstanciação, e fala, também.Entre as flores que são sempre fiéis à Terra e, por isso, murcham sempre arrependidas, a rosa, é a eleita. A rosa é a flor de Rilke. Cultivou rosas no jardim de Muzot. Dedicou-lhe um ciclo de poemas franceses – Les Roses – e escreveu para o seu epitáfio: «Rose oh Reiner Widerspruch. Lust niemands Schlaf zu sein unter so viel Lidern», quer dizer, «Rosa, ó Contradição Pura, Volúpia / De Ser O Sono De Ninguém Sob Tantas / Pálpebras»[25]. Em Os Sonetos a Orfeu, a rosa é uma flor dotada de ser.
Está dentro do circuito órfico. Bem perto de Orfeu. É, amiúde, conotada com algo de fundamental, ainda que não seja dito exactamente o quê. A rosa é em si um perfume que percorre os séculos. No entanto, é vão procurar encerrá-la num nome, numa designação. Ela escapa-nos sempre. Rilke respira a rosa, ao mesmo tempo que expressa o desejo de que se dê um nome a uma variedade de rosas.
Tudo é metamorfose, fim e recomeço: «Rosa, ó rainha, outrora é de supor / fosses cálice de bordo limitado. / Mas pra nós és a plena, inumerável flor, / o objecto inesgotado. / Nessa riqueza, pões roupas e mais roupas / num corpo que é de nada senão luz; / mas cada pétala mostra como poupas / todos os atavios e como os / negas. Há séculos nos chama teu perfume / com seus mais doces nomes; de repente / como a glória paira nos ares, balança. / Ninguém sabe nomeá-lo, apenas se presume... / E uma recordação tem-no presente: / nós pedimo-la às horas da lembrança.”[26]
A Rosa é a essência de toda a plenitude de ser. Tem um encanto natural que instaura contradição. É portadora de uma beleza peculiar que, com os espinhos, se mantém eternamente unida. É a flor dos contrastes: da suavidade delicada da sua beleza ingénua, dada pela cor e pelo aveludado das suas pétalas, brota, ao mesmo tempo, a agressividade, a violência dos agudos espinhos, que fazem sangrar a mais dura pele. É elevada a um nível incomparável, ao representar a transitoriedade da vida, tão cara ao Poeta.
De uma forma mais delicada, ao representar o conhecimento da beleza na efemeridade, ao figurar a morte que anuncia o fim do ciclo da vida, pelo espinho que pica, e intensamente faz doer. No entanto, o seu ser é inesgotável, na sua temporalidade e, enquanto tal, coloca-nos esse premente problema da aceitação da transitoriedade permanecente no homem e nas coisas, quando as pétalas murcham e os picos ainda permanecem.
As pétalas são invólucros de um corpo que já não é nada, cuja perenidade se revela através de perpetuações eternamente perpétuas.A Natureza, na sua ordem, manifesta uma intencionalidade que se anuncia por Leitmotive. Seria apenas preciso sentir-se parte da mesma textura para os perceber: «Escuta, ouves já os primeiros ancinhos / no trabalho; humano ritmo ouvido, / no silêncio da terra forte nos caminhos / da anteprimavera».
Os humanos já não têm mais a morosidade necessária para captar a atmosfera musical que se solta nos retornados círculos da Natureza. Os sons emergem da sombra e voltam à sombra, num movimento intemporal, sem que eles os sintam: «perto das sepulturas, / trazem-te os teus dizeres, os que então jorrem, / passem teu queixo de velhas cãs escuras, / pra caírem depois na concha à tua frente. / (...) Uma orelha da terra».[27]
Os humanos têm pressa. São ambiciosos. Estranhos e distantes entre si. O ruído da vida quotidiana diminui-lhes a subtileza da audição. Já não são capazes de escutar os sons da Terra: à “orelha da terra” não respondem mais. Os Leitmotive, expressões da vitalidade da Natureza, só os atraem para cumprirem o prazer do efémero.
Os frutos inchados de maturidade são, por si, uma atracção irresistível, mas sem consequências representativas, para os humanos, no seio do ventre da circularidade da Natureza: «Onde havia palavra, há descobertas / na surpresa da polpa que se toca». «Esperai..., a que sabe... Mas foge logo após».[28]Tudo é breve e passageiro. Se Rilke insiste na presença do efémero é, para tornar mais claro, que a origem completa o seu arco com a morte: «Tudo isto fala / morte e vida na boca». Engana-se quem, no reino dos vivos, acredita na eternidade da Terra.
O canto órfico é o alento que comove e que sobrevive quando a Natureza se desfolha. O poeta, que sobrevive à estação da morte, está sempre preparado para acolher o futuro. A época do ano mais expoente é aquela em que, sendo já Inverno e ainda não sendo Primavera, se anuncia a renovação. Rilke é, definitivamente, o poeta da Vorfrühling.
A pré-Primavera anuncia as celebrações da festa órfica. A árvore, a água, resistiram ao tempo e à morte. Exprimem a força renovadora da criação. Brevemente chegarão as folhas. Depois, os frutos e, com eles, os perfumes. A marcha do ser sobrepõe-se ao não-ser. A força da criação é incontrolável. Mas a alegria e a beleza não são uma conquista para a humanidade. Tudo o que vem do ser, a ele volta.
A Natureza expõe-se nos seus sinais, recuperando-os no movimento de regresso a si.O domínio dos mortos é tão presente como o domínio dos vivos. Mas só quem partilha das refeições dos mortos, pode compreender a sociedade dos vivos. Quem desce ao reino das trevas, como Orfeu, pode celebrar os mistérios da Terra. «A vós, em meu sentir presença permanente, / sarcófagos antigos, aqui venho saudar-vos»[29].
Os mortos são uma “presença” diversa da dos vivos. Permanecem na unidade do ser, regressados à essência da sua textura. A morte não faz parte de um estado misterioso, antes acompanha a vida como uma metade. «Como Orfeu, toco / a morte nas cordas da vida / e à beleza do mundo / e dos teus olhos que regem o céu / só sei dizer trevas (...) Mas, como Orfeu, sei / a vida ao lado da morte, / e revejo-me no azul / dos teus olhos fechados para sempre»[30].
Orfeu frequenta a vida e a morte, sem deixar de ser presente. O seu canto é de eterna ressonância.O reino dos mortos é sempre presente e, na sua unidade, mantém todo o passado e promete todo o futuro.
Na metamorfose do visível em invisível, as metades reúnem-se. «Nós, raça de milénios: nós, mães e pais, / sempre prenhes do filho que, supomos, / virá, e além de nós, há-de abalar-nos mais. / Sem fim aventurados, o tempo que nos resta! / Só a morte em silêncio conhece o que nós somos / e o que é que ela ganha, quando a nós empresta.»[31]
Uma das ideias fundamentais da atmosfera rilkeana é a da morte metamorfose. O movimento de passagem do ser ao não-ser e do não-ser ao ser é constante. Não há um princípio nem um fim, mas um encadeamento de passagens de figuras. Contudo, no primeiro soneto, dedicado a Wera Ouckama Knoop – o nº 25 da primeira parte – Rilke não esconde a desolação e a dor perante a morte prematura com que «transpôs a porta aberta e sem consolo».
É interessante constatar que este soneto que, não rodeia o espanto perante o não significado da vida, precede imediatamente o soneto em que Rilke fala da morte cruel de Orfeu pelo “enxame das Ménades”.Há uma afinidade traduzida pelo efeito do canto de Orfeu na bailarina. Só escutando a lira, moveu o seu efémero corpo, mostrando que a dança é, também, um lugar do regresso do ser. «Sabias ainda o lugar da lira erguida, esse / onde ela ressoa –; o inaudito centro. / E por ela ensaiaste passos da tua arte / na esperança de que um dia, à festa plena, dentro, / a face e o andar do amigo se volvesse».[32]
Antes deste segundo jogo, o da bailarina com o poeta, Rilke atribui a Wera o soneto 18, da segunda parte, fazendo participar a dança e a bailarina da superação do tempo e da exaltação do círculo órfico. “Ela dormia o mundo “. É a afirmação da harmonia silenciosa do universo”.[33]
Isabel Rosete
[1] Rainer Maria Rilke, Os Sonetos a Orfeu, 12, p. 20.
[2]Idem, 25, p. 61.
[3] Idem, 24, p. 60
[4] Cf. in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, pp. 50 – 52.
[5] Ibidem.
[6] Cf. Rainer Maria Rilke, in Paulo Quintela, Hölderlin E Outros Estudos, p. 256.
[7] Rainer Maria Rilke, in Paulo Quintela, Hölderlin E Outros Estudos, p. 55.
[8] Rainer Maria Rilke, “A Morte”, in Poemas. As Elegias De Duíno E Sonetos A Orfeu, p. 379
[9] Rainer Maria Rilke, Orfeu. Eurídice. Ermes, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, pp. 162 – 163.
[10] Rainer Maria Rilke, carta de 23 de Janeiro de 1919, à Condessa de Stauffenberg.
[11] Rainer Maria Rilke, in Paulo Quintela, Hölderlin e Outros Estudos., p. 259.
[12] Rainer Maria Rilke, in op. cit., pp. 259 - 260.
[13] Idem, p. 260.
[14] Idem, p. 261.
[15] Rainer Maria Rilke, “Assalta-me, música com fúria rítmica”, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 335.
[16] Cf. Rainer Maria Rilke, “À Música”, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 389.
[17] Rainer Maria Rilke, “Se tudo ao menos uma vez se calasse”, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 91.
[18] Rainer Maria Rilke, Os Sonetos A Orfeu, 11, p. 47.
[19] Sófocles, Antígona, 335 – 375, pp. 52 – 53.
[20] Um dos pintores representantes da corrente idealista da pintura alemã do século XIX. É o pintor de paisagens de cores escuras, de estilo monumental patético, em cujas telas dominam temas mitológicos.
[21] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 10, p. 46.
[22] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 21, p. 29.
[23] Rainer Maria Rilke, Fonte Romana, in Poemas. As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, p. 159
[24] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 17, p. 52.
[25] Rainer Maria Rilke, “ROSA, Ó CONTRADIÇÃO PURA, VOLÚPIA”, in Poemas. As Elegias De Duíno E Sonetos A Orfeu, p. 441.
[26] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 6, p.42.
[27] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 15, p. 51.
[28] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 13 – 15, pp. 21 – 23.
[29] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 10, p. 18.
[30] I. Bachmann, O Tempo Aprazado, pp. 27.- 29.
[31] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 24, p. 60.
[32] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, II, 28, p. 64.
[33] Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 2, p. 10.
Os Sonetos a Orfeu
Um deus pode. Mas como erguer do sol,
na estreita lira, o canto de uma vida?
Sentir é dois; no beco sem saída
dos corações não há templos de Apolo.
Como ensinas, cantar não é a vaidade
de ir ao fim da meta cobiçada.
Cantar é ser. Aos deuses, quase nada.
Mas nós, quando é que somos? em que idade
nos devolvem a terra e as estrelas?
Amar, jovem, é pouco, e ainda que doam
as palavras nos lábios, ao dizê-las,
esquece os teus cantares. Já não soam.
Cantar é mais. Cantar é um outro alento.
Ar para nada. Arfar em deus. Um vento.

Rainer Maria Rilke
Tradução Augusto de Campos
O poeta
Vai-te para longe de mim, hora.
O bater de tuas asas me excrucia.
Mas de minha boca, que fazer agora ?
e da minha noite ? e do meu dia ?
Eu não tenho amada nem abrigo,
sequer um lugar para viver eu tenho.
Todas as coisas em que me empenho
tornan-se opulentas e acabam comigo.

Rainer Maria Rilke
Tradução José Paulo Paes
O Solitário
Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.
Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,
ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

Rainer Maria Rilke
(Tradução: Augusto de Campos)